Sinopse: Era uma vez, eu era uma
menininha que desapareceu. Era uma vez, o meu nome não era Alice. Era uma vez,
eu não sabia como tinha sorte. Quando Alice tinha dez anos, Ray levou-a de sua
família, desde então ela sobrevive esperando que o pesadelo acabe.
Qualificação: Excelente!
Resenha: Forte, impactante, desesperador.
Impossível parar de ler, sofrer, se emocionar, se indignar. Uma das histórias
mais terríveis que já li e, com certeza, não é para todo mundo.
Um livro sobre
a aparência das coisas e as coisas como elas são. Sobre o que vemos e o que
queremos ver. Sobre submissão e psicopatia. Uma história mais comum do que se
imagina, sob um ponto de vista nada usual.
Comecei a ler
sem conhecer a sinopse e não me preparei de forma alguma para o impacto das
informações. Senti um choque tão intenso, que só me ocorria pensar meio que
numa forma de prece: “não pode ser, não pode ser, não pode ser...”
O livro é
curto, cheio de frases e capítulos curtinhos, mas sua mensagem e escrita são
tão bem conduzidas que não posso de maneira alguma dizer que a narrativa tenha
trazido qualquer prejuízo, antes o contrário, deu ênfase à história. A
construção não é linear, vai alternando presente e passado, trazendo elementos
que se conectam e vão compondo o panorama maior, cada vez mais complexo e
assustador.
O texto é de
uma sensibilidade absurda. As questões que passam pela mente do leitor vão
sendo respondidas gradativamente. Faz uso de repetições necessárias para nos
lembrar que anos se passaram sob aquelas mesmas ameaças, até que já sabemos o final
da frase e tudo nela implícito tão bem quanto a personagem.
A garota sem
perspectiva vive um dia depois do outro. A garota objeto aprendeu a não
desobedecer, nem esperar ajuda. A menina cresceu e se pergunta quando será
descartada, quando deixará de ser morta-viva para ser apenas uma dessas coisas,
qualquer uma, desde que seja inteira novamente.
A condição de
mulher e de criança, duplamente frágil. O assunto não é novo, costuma encher os
noticiários e seriados policiais, mas enquanto neles observamos de forma
distante, como um caso, um número, um nome, aqui mergulhamos no cotidiano de
tortura e abuso, nos pensamentos de desesperança, impotência e resignação. O
que acontece é um pesadelo ganhando vida e contornos tão nítidos que passa a
ser impossível ignorar.
A situação vista
de dentro, nos faz entender sob perspectiva, que somos aquelas pessoas do lado
de fora, que notam algo esquisito, percebem que vivem uma realidade diversa e
tudo quanto fazem é olhar com desconfiança, desprezo, nojo. É possível estender
um sanduiche ocasionalmente, mas nunca ouvir a verdade, nunca fazer a leitura
correta. É no mínimo desconcertante perceber que fazemos parte do público que
questiona “por que não disseram nada?”,
teimando em jogar a culpa sobre os ombros das vítimas indefesas, quebradas, que
ainda abaixam a cabeça e concordam em suportar mais esse fardo pelas agressões
sofridas.
SPOILERS!!!!!!!!!
“Ninguém vai vê-la. Ninguém vai dizer nada.
Ninguém vai te salvar.”
Ela sabe que
não deveria ir com estranhos, mas não acontece como sempre disseram que seria.
O contexto é perfeitamente aceitável e, no final, ela é somente uma garotinha
perdida com seu novo gloss labial.
O cotidiano de
Alice parece inconcebível. A revolta sobe pelo estômago, queima na garganta e a
mente fica confusa tentando encontrar os elementos que levaram a história a
esse ponto. Pouco a pouco ficamos convencidos, presos naquela armadilha
maldita.
Enquanto Alice
planeja capturar outra garota para ocupar o seu lugar, somos invadidos por um
conflito excruciante. Como ela pode considerar entregar outra garotinha para
aquele monstro? Como ela pode não se contaminar pela chama de esperança de ser
substituída por outra garota? É egoísta e mesquinho, ela sabe disso, mas não
pode resistir à promessa implícita.
A psicopatia
de Ray é apresentada sob o olhar de Alice. Ninguém precisa dizer o que ele é,
mas todas as nuances vão aparecendo até que o quadro seja evidente e completo. Você
nem precisa constatar o fato reduzindo-o a um termo, pois você já foi além disso,
na percepção dos distúrbios e contradições deste indivíduo tão perturbador.
Pior do que isso, você consegue aceitar que ele é uma pessoa, entender suas
motivações, sua história de vida, seus traumas e ideologias deturpados.
Ela vive o
horror, flerta diariamente com a morte, mas se apavora quando tem a compreensão
de que é chegado o momento em que será descartada, pior, não somente ela, mas
toda sua família. Quando percebe que não tem mais qualquer possibilidade de
viver, ela se rende e tenta evitar que a outra garotinha tenha o mesmo fim.
O medo
reconhece o medo. A gente espera que a policial perceba e interfira naquele
tormento, mas somente Jake consegue entender a súplica no olhar de Alice. Somente
o medo que reconhece nela em reflexo de si mesmo o convence a tomar uma atitude
real para salvar a garota. Foi
surpreendente e emocionante. Por mais que eu desejasse vida para Alice, seu caminho
era de morte, sempre foi. A morte foi uma libertação que a vida não lhe daria.
Chorei por ela e por todas que sofreram como ela, anônimas cujos erros foram de
ser belas, inocentes e delicadas como uma flor.
Como evitar
pensar que pode acontecer ao meu lado? Como não parar para olhar duas vezes
aquela figura esquisita que perambula pela sua rua e parece um vizinho como
outro qualquer?
Nenhum comentário:
Postar um comentário