sábado, 24 de novembro de 2012

Serie Razorland – Enclave – Ann Aguirre

Sinopse: No mundo de Deuce, as pessoas só ganham o direito de ter um nome se sobreviverem aos primeiros 15 anos. Ela vive no subterrâneo, num Enclave, e sempre quis ser uma Caçadora, para alimentar o grupo e protegê-lo das Aberrações. Junto com Fade, ela logo descobre que nem tudo é aquilo que aparenta, mas quando o desastre parece iminente, não importa o quanto tente, Deuce não pode deter a maré negra que a leva para longe do único mundo que ela já conheceu.

Qualificação: Excelente!!

Resenha: Consumi em doses cavalares e agora sofro abstinência por não ter a continuação em mãos.

É difícil tentar transmitir o horror da coisa toda. É uma daquelas distopias brutais, bastante violentas, em que o ser humano se agarra a instintos animais e regras rudimentares para sobreviver num ambiente hostil. Aquilo que funciona é valorizado e não existe espaço para questionamentos e flexibilidade. Os traços de compaixão e bondade denotam fraqueza e são motivo de vergonha.

O Enclave é a vida de Deuce, tudo que ela conhece, tudo pelo que luta e acredita. Ao ser designada como parceira de Fade, o cara misterioso vindo de fora, ela se depara com fatos que contradizem sua boa fé de forma alarmante.

Zumbis, ou “Aberrações” estão por toda parte com o único objetivo de comer toda carne que puderem conseguir. O Enclave está em algum trecho dos antigos túneis de metrô, quase totalmente imerso na escuridão e a luz do sol é uma lenda distante da qual poucos ouviram falar. A expectativa de vida gira em torno de 25 anos e alcançar essa marca faz da pessoa um ancião digno de ser ouvido.

Uma das coisas que mais gostei foi a percepção que Deuce tem sobre as coisas aliado a um senso prático. Quando descobre algo novo, ela traça um conceito mental que lhe permite enxergar com clareza o contexto, as pessoas e o sentido por trás de tudo. Assim, mesmo quando seu coração fica apertado, sua mente é capaz de compreender as motivações e agir de acordo com a necessidade da situação. Essa é a principal característica de sua força.

A inteligência e lógica de raciocínio propiciam a Deuce um senso crítico, ainda que bastante tolhido, que tende a crescer e inflamar se bem alimentado. Num mundo de regras duras e inflexíveis, pensar pode trazer sérios problemas, mas não fazê-lo pode levar à morte, assim, precisamos estar preparados para vivenciar duras escolhas. E se esse mundo muitas vezes é cruel e injusto, não demora a percebermos que a falta total de regras pode torná-lo ainda pior.

Existem muitos mistérios sobre o passado, a vida fora do Enclave, as aberrações, mas a princípio tudo isso é secundário. Ficamos nos perguntando que tipo de coisa deixou o mundo daquela maneira, mas no início a ambientação é tão própria, rica e necessária, que as dúvidas não são importantes, mais vale a superação de cada etapa, cada obstáculo. Aos poucos recebemos respostas e formulamos mais perguntas, até que a busca pela verdade começa a dar um certo propósito à saga.

SPOILERS!!!

Corra até suas pernas sangrarem e não olhe para trás!


Acabou, como assim? Sinto que a jornada ainda não encontrou seu destino final, embora dê uma leve impressão de que sim. Existe a possibilidade de que agora eles tentem voltar, mas parece altamente improvável, toda narrativa é direcionada para frente, sem hesitação, sem discussão, sem reservas e arrependimentos. Todos parecem sempre dispostos a deixar a maior distância possível entre o passado e o presente. É tudo muito forte e intenso. Imagino como eles conseguem seguir deixando tudo e todos para trás, certos de que já não há como voltar ou salvar ninguém. A esperança de encontrar algo melhor é a única coisa que os mantém lutando.

Quanto mais exploram e conhecem aquela New York devastada, mais se dão conta da enormidade do problema. Aberrações cada vez em maior número e grau de inteligência seguem representando um risco, uma praga, uma infestação descontrolada e terrível. Deuce evita pensar nesses seres famintos,em sua  origem humana, talvez o resultado desastroso de uma vacina bem intencionada. Enfrentar a ameaça no escuro dos subterrâneos facilitava o tratamento frio e distanciado e apenas um firme treinamento permite que eles continuem matando, mas a cada momento parece mais difícil deixar de questionar ou tentar entender a existência de tais criaturas.

Chocante a situação das gangues de New York, especialmente levando em conta a faixa etária dos participantes. Nos túneis tudo parecia terrível, mas na cidade o caos é muito maior e a lei da selva não encontra limites, vale a força e domínio do mais forte, territórios são demarcados com sinais, mulheres só servem para reprodução independente de vontade ou preparo. A captura de presas é motivo de exibição e reafirmação. Poderia estar falando de animais que não faria diferença, alguns animais até pareceriam mais civilizados.

No começo somos praticamente convencidos de que é impossível sobreviver sem estar pronto a colocar o senso prático de sobrevivência em primeiro lugar. A execução do garoto cego é o gatilho que desperta em Deuce a dúvida sobre a necessidade de determinados procedimentos, mas existem muitas coisas em jogo na ocasião e pouca convicção sobre a atitude correta a tomar.

Ao longo da jornada seus olhos se abrem e, da mesma maneira que o sol é capaz de feri-los, a sua verdade machuca a cada perda. Ao final, ela está cansada de desistir daqueles que gosta e não tem muito a perder por seguir aquilo que considera correto. Todo o processo que leva a este ponto é muito bem construído, afinal ela cresceu admirando e perseguindo um estilo de vida que lhe tornava aquela pessoa, que sempre enxergava tudo em função das chances de sobrevivência.

Uma coisa legal é ver o nosso mundo em ruínas sob o ponto de vista de Deuce. Ela vive o oposto do leitor, tendo compreensão e desenvoltura sobre um mundo desconhecido para nós e, depois, descobrindo coisas que nos são comuns e corriqueiras, como a existência da lua.Nesse aspecto, a leitura é uma experiência impossível de ser transformada em filme. Ver um vagão de metrô abandonado, por exemplo, é de associação imediata e muito diferente de construir uma percepção à partir da descrição imprecisa de quem não entende ou reconhece direito o objeto em questão. De qualquer maneira, já imaginou como um lugar assim pode ser assustador? Esta imagem é de uma linha abandonada em Cincinnati, nos EUA.

Enquanto a capacidade de se importar aproxima Deuce de Fade, o senso prático é a única coisa que lhe permite aceitar a mudança da maré com simplicidade e acolher Stalker como novo membro do grupo. Ela observa que Stalker é como ela sempre trabalhou para ser, vê nele alguém que ela poderia ter se tornado, por isso entende as atitudes dele. No entanto, é Fade quem desperta e compreende nela o lado sensível e humano tão profundo e seu que nenhum treinamento foi capaz de suprimir. No final, ao olhar para eles, ela tem a sensação de que se completam, e, num mundo regido pelos fortes, ela surge como uma “pombinha”, forte e frágil, surpreendente e apaixonante, despreparada para lidar com o interesse de seus companheiros.

Amei a forma como a situação de Fade foi construída. Partimos do pensamento de que ele era alguém fechado, isolado e estranho para acabar descobrindo que ele nunca havia se integrado porque nem mesmo podia compartilhar seus conhecimentos, porque se tornou um prisioneiro, um caçador por falta de opção. O mesmo pensamento que transformou Fade em membro do Enclave foi aplicado quando Stalker se junta ao grupo.
            
A única ressalva que tive com a leitura foi a discrepância aparente no transcorrer do tempo. O mesmo mundo em que livros desintegram ao serem tocados, comidas enlatadas servem para consumo? Em certos momentos temos a impressão de que se passou um tempo enorme, uma era, noutros não parece possível cogitar a passagem de mais que três décadas. Ainda não consegui estabelecer uma noção de tempo para a trama.



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